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quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Crônica de um tempo distante

 Crônica de um tempo distante


 Daniel Ribeiro

 Há alguns dias, por descuido, deixei cair a minha carteira contendo pequena quantia em dinheiro e meus documentos de identificação. Perdia-a na rua. Uma hora depois uma pessoa procurava, no local onde eu estava, pelo dono de uma carteira. Foi quando notei que estava sem a minha. Prontamente, entregou-me a carteira identificando-me com os documentos. A pessoa – um homem dos seus 30 e poucos anos - disse que a encontrara da rua em frente.

Recuperar a carteira foi uma alegria. Os documentos estavam intactos, mas o dinheiro não estava junto. Agradeci a pessoa e pedi desculpa por não poder recompensá-la financeiramente pois não tinha dinheiro. Nem pensei que o mesmo pudesse ter ficando com o dinheiro e, certamente, não ficou senão não procuraria pelo dono da carteira. Ele agradeceu dizendo apenas: “Nem precisa, já me basta ter encontrado o dono.”

O fato me fez lembrar um episódio que ocorreu na infância. Uma das lições que meu pai me deixou na sua rápida passagem nesta terra. Ele faleceu um mês antes de eu completar nove anos. Foi no último ano de sua vida.

Meu pai não me ensinou a soltar pandorgas, isso eu aprendi na escola, no pré-primário, com minha primeira professora (hoje em dia nem espaço mais há nas cidades para isso e nem professores ensinam a fazer, quando mais soltar uma pandorga). Apesar de nunca ter soltado pandorga comigo,  meu pai orientou-me para o que é o certo e o que não é certo, o que é errado. Também sobre o respeito e a educação com que se deve tratar os outros, mesmo que discordem da gente. “Ninguém tem sempre toda a razão”, repetia. Isso tudo aprendi em lições como esta que aqui relembro e relato.

O fato.

Certo dia – no período de início das aulas, em março, quando eu cursava a segunda série, no horário da tarde – na volta da escola (distante cerca de quatro quilômetros), quando já me aproximava da minha casa, ao passar na rua em frente ao armazém de “secos e molhados” (assim eram chamados os mercados de bairro, na época) do seu “Ferrari”, percebi um pequeno volume no chão da rua. A rua (denominada de Santa Maria, na Vila Sulina em Santa Rosa - minha casa ficava na quadra acima, na rua Triunfo) ainda não tinha pavimentação. Agachei-me e apanhei o volume. Era um pequeno maço contendo algumas notas cuja estampa, tinham as figuras de Santos Dumont e do Tiradentes (não lembro de que valor se tratava e, pouco importa, de lá para cá a moeda nacional já mudou quase uma dezena de vezes). Olhei ao redor e não percebi ninguém por muito perto na rua naquele momento. Coloquei o maço dentro da minha pasta de pano com os cadernos e apetrechos da escola. Corri para casa.

Mamãe ao me ver entrando porta a dentro alvoroçado, espantou-se:

- O que foi, meu filho? Não precisa vir correndo, chega suado, repreendeu-me. – Isso ela ponderava sempre e completava: - Mas também não venha passeando pela rua.

Eu tirei da “pasta” o maço de notas

- Olha, mãe! O que eu achei na rua. Ela olhou espantada. Pegou o dinheiro da minha mão.

- O que é isso? Tu achou? Na rua?

- Sim, mãe – respondi. Quase em frente ao armazém do seu “Ferrari”. “Tava” próximo da valeta. – Expliquei. – Podemos ficar com ele? – Inquiri, ansioso.

- Vamos falar com o teu pai. Este dinheiro não é nosso. Tu não viu ninguém por perto que possa tê-lo perdido? Ninguém andando na rua, procurando algo?

- Não. Não vi ninguém por perto. – afirmei.

Mamãe foi até a janela da cozinha e avisou meu pai:

- João, vem até aqui, o mate tá pronto e, teu filho tem uma coisa para te mostrar.

Papai estava capinando nos fundos do terreno onde cultivávamos uma pequena plantação de mandioca, um eito de cana-de-açúçar que servia como cerca-viva delimitando o nosso terreno do do vizinho, batatas-doce e, - lembro ainda -, uns quatro ou cinco pés-de-pêssegos. Ele fazia isso depois que chegava do trabalho quando sobrava um tempo já que trabalhava numa estofaria. Nos últimos dois anos papai esteve muito doente. Meu irmão mais novo estava com ele. Mamãe estava grávida, esperando o terceiro filho (que seria filha) da família.

Logo ouvi papai, limpando-se no tanque de lavar roupa que ficava no lado de fora da “casinha” onde funcionava também um depósito e a lavanderia. Subiu os poucos degraus da escada do pequeno “puxado” ao lado da porta da cozinha. Meu irmão veio atrás.

- O que foi? – Perguntou, curioso.

- Conta para ele, filho. – Instigou minha mãe.

Eu fiz o mesmo relato. Peguei o dinheiro que deixará em cima da mesa e mostrei esperando que ele o pegasse para certificar-se da quantia. Papai apenas olhou para o que eu tinha nas mãos. O que ele me disse foi como um “laçasso” de vara de guaxuma – das raras vezes que ele aplicou em mim “um corretivo para lembrar que as coisas erradas doem”:

- Vai lá e devolve o dinheiro. - Ordenou.

Fiquei atônito. Devolver? Olhei para minha mãe. Ela pareceu não compreender também.

- Por que, pai? Eu achei. “Tava” no chão. Se eu não pegasse outro pegaria. Para quem devolver, nem sei quem é o dono? - Tentei argumentar.

- É. O guri teve sorte. Não é dinheiro roubado. É achado. Não se sabe o dono. - Disse mamãe, vindo em meu auxílio.

- Filho meu não tem sorte. – Sentenciou papai. – O dinheiro não é dele, não é nosso. Ele não trabalhou para ganhá-lo. Não o mereceu. Alguém perdeu. Alguém deve estar procurando. Deve estar fazendo falta para alguém. Se achou ali, próximo ao armazém do “seu” Ferrari, pode ser de alguém que foi fazer uma compra lá. Então, vai lá e devolve. Deixa o dinheiro como o “seu” Ferrari, ele é capaz de lembrar de quem possa ser ou alguém vir procurar no armazém dele. Ele faça o que achar certo para ele. O que é certo para nós é que o dinheiro não é nosso. Leva lá, agora.

Não retruquei. Minha mãe só olhou para mim fazendo um gesto de assentimento com a cabeça. Fui correndo até o armazém do “seu” Ferrari. Lembro dele e de sua mulher, dona Astra. Sempre solícitos. Vendiam fiado apontando na caderneta. “Seu” Ferrari tinha cabelos completamente brancos. Quando cheguei ao balcão ele veio atender-me:

- Diga, guri.

- “Seu” Ferrari, encontrei este dinheiro ali na rua, quase aqui na frente. Meu pai mandou entregar ao senhor para que devolvesse ao dono.

Surpreso, ele pegou a quantia que depositei no balcão.

- Teu pai mandou fazer isso? Mas quem é o dono? – Perguntou, incrédulo.

- Não sei. O pai disse que o senhor saberia de quem pode ser ou se alguém vier aqui procurar.

Quando voltei para casa, papai e mamãe tomavam mate.

- O que ele disse? – Mamãe quis saber.

- Ele perguntou se o pai tinha mandado fazer isso e também quis saber quem era o dono. – Respondi. E emendei: Eu disse que o senhor havia dito que ele saberia descobrir o dono.

Sorvendo o mate, sentado na “área” do “puxado” da nossa casa, papai fez um breve e definitivo discurso:

- Meu filho, vou de dizer uma coisa, nunca esqueça: sorte não existe. O que existe é trabalho, honradez, decência, honestidade. Jamais espere pela sorte. Tu pode conseguir muita coisa, pode até precisar dos outros e pode ser que não te ajudem, mas nunca fique com o que não é teu, não fique com o que tu não ganhou por teu trabalho, mérito. Sabe o que é isso?

Fiz um gesto negativo com a cabeça.

Ele arrematou:

– Isso quer dizer: seja sempre honesto e terás uma vida melhor não importa se for um homem humilde, pobre ou mesmo rico. Seja sempre um homem decente.

A história aqui, ganhou alguns adereços. Mas a essência que aprendi desta lição foi esta: sorte não existe, a vida é feita de trabalho, respeito pelos outros, pelo que é dos outros. Papai viveu pouco. Era analfabeto, assim como minha mãe. Morreu naquele mesmo ano, no dia 04 de outubro de 1969, dia de São Francisco de Assis, aos 33 anos. Eu tinha oito anos, quase nove anos, meu irmão três anos e minha irmã, seis meses. Mamãe ficou viúva aos 28 anos. Foi ela quem me trouxe de volta à lembrança este episódio, vários anos depois. Hoje ela também já não esta mais com a gente.

Quem descobriu minha carteira no chão, a recolheu, observou o conteúdo, pegou o dinheiro e jogou-a de volta no chão sem se importar de quem era, não agiu errado. Agiu apenas da forma como lhe ensinaram e os exemplos que recebeu em casa ou na vida se, para tanto, os pais não lhe ensinaram a lição correta.

Hoje, cada vez mais pais relegam tudo à escola, aos outros, a educação, o exemplo, que os filhos procuram neles. Sob o pretexto de que precisam trabalhar para prover a família, deixam os filhos a mercê da rua, da TV, da internet. Elementos básicos da formação do caráter e da personalidade são atribuídos a estranhos. É certo também que, muito embora, hajam pais se esforcem para educar os filhos em conceitos e preceitos morais de honestidade, de trabalho, de respeito, alguns filhos podem acabar decepcionando os pais. Diz-se que isso é da vida. Mas os pais amargam a frustração com o erro dos filhos como se fossem seus próprios erros. E, os filhos que erram ou não dão valor a honestidade, ao respeito, terão também filhos que dificilmente agirão de outra forma do que aquela que o exemplo dos pais lhes forneceu. Filhos não são apenas resultado da nossa carga genética, são também resultado da imagem de mundo e vida que impregnamos na mente e no caráter deles. Definitivamente, se queremos um mundo melhor temos que transmitir, com o exemplo nosso, o mundo melhor que queremos. Afinal, inexoravelmente, uma fruta jamais cai longe do pé que a gerou.  Isso em se tratando de uma fruta, mas nós, seremos humanos, temos opções. Nunca deixaremos, como a fruta, de ser resultado daquela árvore, mas  diferente da fruta, podemos optar por não repetir a árvore, embora isso não seja algo fácil e natural.
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