Dora Kramer vendo o mensalão passar
Dora Kramer é jornalista. Ela pratica a falta de dúvidas que
caracteriza o jornalismo dos grandes meios. Sobre o julgamento do
mensalão do PT, pariu um cacto: “Advogados criminalistas de um modo
geral têm demonstrado grande contrariedade com a linha adotada pelo
Supremo Tribunal Federal no julgamento do mensalão. Ouve-se a reclamação
em toda parte, sejam os advogados defensores ou não dos acusados na
ação penal 470. A despeito de toda a consistência de argumentação
transmitida ao vivo pela televisão, alegam desrespeito ao ‘devido
processo legal’. Falam em ‘absurdos’ sem apontar precisa e
incontestavelmente quais desatinos estariam sendo cometidos. Tampouco
conseguem explicar o que esperavam que o STF fizesse diante de todos os
atos e fatos presentes nos autos, e pelo relator perfeitamente
concatenados”.
Jornalistas adoram racionalizar.
Fazer-se de inocentes.
Qualquer criminalista, ou qualquer pessoa com duas ervilhas no
cérebro, consegue mostrar o quanto o julgamento do mensalão do PT no STF
está sendo “diferente”. Aqui vão algumas pistas para Dora Kramer.
1) Aplicação da teoria do domínio do fato. Nunca o STF havia
aplicado essa tese um tanto duvidosa (alguns juristas a definem como
“teorias vigarista”) para condenar alguém. Significa dispensar o Estado
de obter a devida prova material para condenar um réu, podendo fazê-lo
com base numa prova lógica, um conjunto de dados verossímeis. O
procurador-geral da República, Roberto Gurgel, responsável pela
acusação, afirmou que alguns acusados não deixaram rastros. Recorrer à
teoria do domínio do fato parece uma escolha de conveniência na medida
em que a pressão da mídia exigia condenações. Tem, porém, um
inconveniente: se o STF for coerente, isso criará jurisprudência. Terá
de ser aplicado em outros casos e por tribunais inferiores. Subtrai
garantias individuais. É questão filosófica e sociológica.
2) Dispensa, em certos casos, do chamado ato de ofício, uma espécie
de recibo ou vínculo material, um ato de função, entre a demanda de um
ato ilícito a um agente público e a execução de algo que atenda ao
pedido e consume a relação ilícita.
3) Eliminação do chamado duplo grau de jurisdição ou instância de
recurso para aqueles que, não tendo foro privilegiado, não deveriam ter
sido julgados diretamente pelo STF. No mensalão mineiro, por exemplo –
ainda não julgado, o que não deixa de ser estranho, pois é mais simples e
ocorreu antes –, houve o desmembramento dos processos. É o normal. O
doutor em direito penal Luiz Flávio Gomes entende que até mesmo os
detentores de foro privilegiado têm direito a ser julgados duas vezes e
que o julgamento poderá ser modificado: “Hoje, depois da leitura de um
artigo (de Ramon dos Santos) e de estudar atentamente o caso Barreto
Leiva contra Venezuela, julgado bem no final de 2009 e publicado em
2010, minha convicção é totalmente oposta. Estou seguro de que o
julgamento do mensalão, caso não seja anulado em razão do primeiro vício
acima apontado (violação da garantia da imparcialidade), vai ser
revisado para se conferir o duplo grau de jurisdição para todos os réus,
incluindo-se os que gozam de foro especial por prerrogativa de função”.
4) Novo entendimento do que seja lavagem de dinheiro. Até agora
prevalecia isto: “A materialidade da lavagem de dinheiro pressupunha ao
menos duas etapas – a prática de um crime antecedente e a conduta de
ocultar ou dissimular o produto oriundo do ilícito penal anterior”.
Nesta nova versão, sempre que há corrupção haveria também lavagem.
5) Uso de justificativas ad hoc para sustentar as mudanças. No caso
do não desmembramento, o relator afirmou que era melhor “para a visão
de conjunto”. O ministro Gilmar Mendes chegou a dizer que certos crimes
“exigiriam provas diabólicas, impossíveis”. Logo, não sendo possível
encontrá-las, deve-se condenar sem elas. Joaquim Barbosa chegou a
contradizer-se ao absolver Duda Mendonça por evasão de divisas. Para
condená-lo o réu precisaria ter, em 31 de dezembro de determinado ano,
mais de R$ 100 mil em conta no exterior. Apesar de ter movimentado
milhões, o publicitário teve o cuidado de não manter esse saldo em final
de ano. Barbosa quase voltou ao “normal” jurídico com a absolvição.
Depois, pressionado pelas críticas da mídia, voltou atrás e condenou
segundo o seu novo imaginário, aquém e além de formalismo. Essa mudança
de um dia para outro indica falta de convicção e alguma leviandade no
julgamento. Claro que Barbosa estava certo de que a maioria absolveria o
réu e que ele, como herói das condenações, ficaria melhor na foto
alteraando o seu voto.
6) Aplicação mutilada da própria teoria do domínio do fato, que
pode ser chamada de “teoria do primeiro homem”, o homem por trás. No
frigir dos ovos, é só isso: tem alguém por trás que precisa
obrigatoriamente saber, autorizar ou conceber para que o crime aconteça.
Sem esse primeiro homem, nada ocorre. A teoria do domínio do fato
tupiquinim, ao gosto do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, e
do ministro Joaquim Barbosa, é a teoria do segundo homem: José Dirceu.
Tem razão o procurador Manoel Pastana: se há um primeiro homem, ele só
pode ser Lula. Não havia como incluir Lula no processo. Parte da
população não aceitaria. Dá-se uma satisfação à mídia pegando o segundo
homem. Ou, noutra leitura, não há provas contra primeiro e segundo
homens. Essa perspectiva revela o ideologismo do caso: o desejo de
“pegar” Lula e o PT. Não sendo possível pegar o polvo, o homem
tentacular, encontrou-se uma saída “honrosa”, a caça ao segundo homem. É
o jeitinho brasileiro. Desnuda certa fraqueza de uma justiça que quer
se apresentar como heroica, forte e sem complexos.
7) Definição de que toda decisão do STF é constitucional, pois o
STF é quem define o que é constitucional. Logo, a regra do jogo depende,
a cada jogo, do que o STF entenderá como adequado. Essa postura, embora
profundamente humana e interpretacionista, cria insegurança jurídica e
escancara o subjetivismo abissal da justiça.
8) Tratamento diferenciado em relação a outros casos semelhantes
tanto do ponto de vista de alguns procedimentos jurídicos –
desmembramento – quanto em relação ao tempo, à prioridade no julgamento.
9) Atuação do relator, Joaquim Barbosa, como julgador e acusador ao
mesmo tempo. O doutor Luiz Flávio Gomes explica que “Joaquim Barbosa,
no caso mensalão, presidiu a fase investigativa e, agora, embora
psicologicamente comprometido com aquela etapa, está participando do
julgamento. Aqui reside o primeiro vício procedimental que poderá dar
ensejo a um novo julgamento a ser determinado pela Corte
Interamericana”.
10) Confusão entre a necessidade de um choque de ética, reclamado
pela mídia, por consciência moral ou ideologia, ou pela sociedade, e
atropelamento casuístico da norma jurídica vigente.
*
Parece evidente que os réus cometeram os crimes de que são acusados.
Parece evidente que o STF não possui provas contra todos eles. Parece
evidente que o STF sentia-se na obrigação moral e jurídica de
condená-los sob pena de linchamento midiático. Parece evidente que o STF
não se preocupa com as contradições que suscitou, deixando isso para o
futuro e para os novos membro da corte. Parece evidente que vivemos um
hiperespetáculo. Parece evidente que, em nome da ética, da ampliação do
campo da autoria e da prova, temos um julgamento político.
O STF pensa seguir a sociedade.
Segue a mídia, que segue a si mesma, profundamente ideológica.
A corrupção, para alguns, é só um pretexto.
É seletiva.
A corrupção de uns incomoda mais que a de outros.
No futuro próximo, o STF poderá se consagrar julgando todos da mesma maneira.
*
O edifício jurídico é paradoxal: a exigência de certas garantias parece favorecer a impunidade.
A flexibilização dessas garantias pode levar a punições de conveniência.
O anarquista epistemológico pergunta:
– Por que só agora o STF resolveu mudar?
O STF responde candidamente:
– Era preciso começar um dia.
– Mas por que mesmo agora?
– A sociedade não estava madura antes.
– Ah, bom!
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