Padre Antonio Vieira, um dos maiores representantes da língua portuguesa (sec. XVII) em seu famoso “Sermão do Bom Ladrão” – ele possuía também uma imensa capacidade oratória – critica e denuncia um mal que vicejava nas cortes portuguesas de antanho. Transcrevo um parágrafo daquele seu magnífico sermão-denúncia, tal a sua contemporaneidade. Não fosse a beleza do texto, seria apenas uma trágica constatação de que a situação atual não é invenção dos dias de hoje, mas uma triste realidade histórica em se tratando de governos em qualquer esfera.
“... Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam, e, para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quando menos meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia, usam de potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem o fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente — que é o seu tempo — colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões, e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente, e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente, nos mesmos tempos, não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plus quam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos, e elas ficam roubadas e consumidas. “
Há um vírus que cresta há séculos na nossa sociedade. Afeta a índole da nação, mas não é, certamente, um mal brasileiro, mas universal e histórico, embora, isso não justifique que aqui tenha se transformado numa epidemia. Incrustado no caráter da humanidade em tempos remotos parece não ter cura. É um elemento autofágico. Ao destruir seu hospedeiro para alimentar-se dele acaba se destruindo. Será esse o fim da sociedade, totalmente tomada pelo vírus da corrupção, do império malversação, da sonegação, do “levar vantagem a qualquer custo”? Estão todos esperando apenas a sua oportunidade de dizer: “agora é a minha vez”? Sucumbiremos todos, tanto os que dilapidam as riquezas nacionais quanto aqueles que hoje se sentem como uns “ETs” apenas por pautarem seu caráter pelos princípios da justiça e da honestidade mesmo nas coisas mínimas do cotidiano? Devo estar errado, a virtude não é uma raridade na consciência e caráter humanos, embora Hobbes (1588/1679) já se tenha sentenciado que “o homem é lobo do homem”.
“... Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam, e, para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quando menos meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia, usam de potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem o fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente — que é o seu tempo — colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões, e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente, e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente, nos mesmos tempos, não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plus quam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos, e elas ficam roubadas e consumidas. “
Há um vírus que cresta há séculos na nossa sociedade. Afeta a índole da nação, mas não é, certamente, um mal brasileiro, mas universal e histórico, embora, isso não justifique que aqui tenha se transformado numa epidemia. Incrustado no caráter da humanidade em tempos remotos parece não ter cura. É um elemento autofágico. Ao destruir seu hospedeiro para alimentar-se dele acaba se destruindo. Será esse o fim da sociedade, totalmente tomada pelo vírus da corrupção, do império malversação, da sonegação, do “levar vantagem a qualquer custo”? Estão todos esperando apenas a sua oportunidade de dizer: “agora é a minha vez”? Sucumbiremos todos, tanto os que dilapidam as riquezas nacionais quanto aqueles que hoje se sentem como uns “ETs” apenas por pautarem seu caráter pelos princípios da justiça e da honestidade mesmo nas coisas mínimas do cotidiano? Devo estar errado, a virtude não é uma raridade na consciência e caráter humanos, embora Hobbes (1588/1679) já se tenha sentenciado que “o homem é lobo do homem”.